Quando tudo baixa, não baixar também
Antonio Machado e a arte de preservar o gosto em tempos de superficialidade
Publicado em: 18/10/2025 às 16:00
Quando tudo baixa, não baixar também
Antonio Machado e a arte de preservar o gosto em tempos de superficialidade
Há épocas em que o mundo parece declinar — o gosto, o pensamento, a sensibilidade.
É quando o ruído se torna constante, a pressa vira virtude e o julgamento se confunde com o gosto.
Antonio Machado, poeta espanhol do início do século XX, captou esse sentimento com uma lucidez que ainda nos atravessa:
“Cuán difícil es cuando todo baja no bajar también.”
(Quão difícil é, quando tudo desce, não descer também.)
A frase, aparentemente simples, contém uma das verdades mais duras da condição humana:
quando tudo ao redor perde densidade, é preciso força interior para não ser arrastado junto.
Quem foi Antonio Machado
Antonio Machado (1875–1939) foi um dos grandes nomes da literatura espanhola moderna e membro da chamada Geração de 98 — um grupo de escritores que refletiu sobre a crise moral e cultural da Espanha após a perda de suas últimas colônias (Cuba, Porto Rico e Filipinas).
Machado viveu num tempo de desencanto e decadência, mas buscava no homem simples, na natureza e no silêncio uma espécie de pureza espiritual.
Para ele, o verdadeiro valor estava na profundidade interior, não nas aparências.
Sua poesia é atravessada por uma melancolia serena, uma contemplação do tempo, e uma constante busca de sentido em meio à desordem moderna.
Ao escrever que “é difícil, quando tudo baixa, não baixar também”, Machado falava de sua própria Espanha — marcada por desorientação, vaidade intelectual e perda de valores —, mas também de algo universal:
a luta de cada um para manter o nível do espírito quando o mundo se torna raso.
O gosto como medida do espírito
A ideia de “gosto” percorre séculos de reflexão filosófica.
Desde o Iluminismo, pensadores tentaram compreender por que certas pessoas parecem ter um senso natural de beleza, proporção e harmonia.
Mas, ao contrário do que hoje se pensa, o gosto não era visto como mera preferência pessoal, e sim como um ato de discernimento — uma forma de reconhecer a qualidade, de distinguir o essencial do trivial.
No século XVIII, David Hume escreveu o ensaio Of the Standard of Taste, onde defendeu que o bom gosto nasce da experiência e da delicadeza de percepção:
“Um verdadeiro crítico deve possuir delicadeza de imaginação, prática comparativa e liberdade de preconceitos.”
Em outras palavras: o gosto não é inato, é cultivado — como uma sensibilidade afinada pela atenção e pelo tempo.
Pouco depois, Immanuel Kant, em sua Crítica do Juízo, definia o gosto como a capacidade de julgar o belo de forma desinteressada — sem querer possuir, dominar ou consumir aquilo que se aprecia.
O gosto, dizia Kant, revela uma forma de liberdade interior: o prazer sem a necessidade de apropriação.
Séculos mais tarde, Pierre Bourdieu, em A Distinção, mostrou que o gosto também é um reflexo social, usado para marcar posição e pertencer a certos grupos.
Mas ao mesmo tempo, Bourdieu evidenciou algo que poucos perceberam: a fragilidade do gosto autêntico num mundo dominado pela aparência.
O gosto verdadeiro, sugeria ele, é aquele que resiste à pressão do pertencimento — aquele que não se deixa comprar, nem moldar.
Superficialidade e o colapso do gosto
Vivemos uma era em que tudo se mede pela visibilidade.
O “gosto” foi reduzido a um clique, uma curtida, um algoritmo.
A estética da internet privilegia o impacto imediato, e não a profundidade do olhar.
Tudo é projetado para agradar rápido e esquecer depressa.
O filósofo Byung-Chul Han descreve esse fenômeno como “a sociedade da transparência”, onde o excesso de exposição elimina o mistério, e com ele, a contemplação.
O tempo de sentir foi substituído pelo tempo de rolar a tela.
Mas o gosto — o verdadeiro gosto — nasce justamente da demora, do silêncio, da atenção.
Ele exige o mesmo tipo de presença que um vinho exige para ser compreendido: não basta provar, é preciso escutar.
Em tempos de superficialidade, manter o gosto é resistir à aceleração.
É recusar a leveza fácil e escolher a densidade que permanece.
É não se deixar seduzir pelo “novo” que nada acrescenta, nem pelo “popular” que nada aprofunda.
Como diria Nietzsche, “as épocas mais superficiais são as mais decadentes; o que não aprofunda, apodrece.”
E é por isso que Machado soa tão atual: ele nos lembra que há momentos em que preservar o gosto é preservar a própria alma.
Fidelidade ao gosto: o antídoto da queda
Quando tudo se banaliza, o gosto torna-se uma forma de ética.
Não ética moralista, mas estética — no sentido mais profundo da palavra: o modo como sentimos, escolhemos e nos deixamos afetar.
O gosto é a fronteira entre o sensorial e o espiritual, entre o que agrada e o que eleva.
Ser fiel ao gosto é não permitir que a pressa decida por nós.
É manter o paladar, o olhar, a escuta — e o pensamento — livres da distração coletiva.
É escolher o vinho, a música, o gesto, não pelo que “agrada a todos”, mas pelo que nos revela a nós mesmos.
Em tempos em que tudo baixa, não baixar também é um gesto silencioso de coragem.
Não se trata de elitismo, mas de profundidade.
É o exercício cotidiano de quem se recusa a viver na superfície — e, com isso, reafirma a própria liberdade.
Epílogo
Quando tudo baixa, o gosto é o que nos mantém de pé.
É ele quem recorda que sentir não é o mesmo que consumir, e que escolher é, antes de tudo, um ato de consciência.O gosto é a arte de permanecer humano em meio à pressa — e de continuar profundo quando tudo se torna raso.