O Apodrecimento da Mente e do Gosto: O Resgate do Paladar Livre
O Apodrecimento da Mente e do Gosto: O Resgate do Paladar Livre
Publicado em: 21/12/2024 às 18:08
O Apodrecimento da Mente e do Gosto: O Resgate do Paladar Livre
Em 1854, Henry David Thoreau descreveu, em sua obra Walden, o que chamou de "Brain Hot", algo que poderíamos traduzir como um "apodrecimento da mente": um estado em que o excesso de estímulos e informações distorce nossa percepção da realidade e nos desconecta do essencial. Hoje, esse conceito está mais atual do que nunca, refletindo a forma como vivemos e consumimos, inclusive no universo do vinho. Assim como Thoreau cunhou o termo Brain Hot, poderíamos dizer que no vinho estamos vivenciando um “Taste Hot”?
Esse fenômeno nos faz refletir sobre como o vinho pode estar deixando de ser uma experiência sensorial genuína para se tornar refém de narrativas e modismos.
O Apodrecimento do Gosto em Ação
No mundo do vinho, esse fenômeno pode ser observado em vários comportamentos contemporâneos:
- A Estética Acima do Conteúdo: Garrafas pesadas, rótulos ultra elaborados, vinhos com cor azul e até espumantes com partículas de ouro muitas vezes seduzem mais do que o vinho em si. A experiência visual e tátil ganha protagonismo, enquanto o conteúdo da taça é relegado ao segundo plano. O vinho se torna um objeto de status, e não uma vivência sensorial.
- A Ditadura dos Rótulos Consagrados: Comprar vinhos apenas pela fama do rótulo ou pela região de origem é outro exemplo. Muitos consumidores acreditam que o prestígio garantirá a qualidade, sem se perguntar se o vinho dialoga com seu paladar. Assim, escolhas pessoais são substituídas por decisões guiadas por um imaginário coletivo.
- O Fenômeno do Instagram: No enoturismo, o foco excessivo em paisagens fotogênicas e vinícolas "instagramáveis" é mais uma manifestação desse “apodrecimento do gosto”. A experiência de visitar uma vinícola, que deveria ser sobre a conexão com o vinho e sua história, muitas vezes vira uma busca por cliques e curtidas, deixando o conteúdo da taça em segundo plano.
- A Obsessão por Notas e Aplicativos: Consultar pontuações em aplicativos antes mesmo de provar o vinho é outro sintoma. Essa prática transfere o poder da escolha ao algoritmo ou ao crítico, silenciando o próprio paladar. O vinho deixa de ser uma descoberta pessoal e vira uma experiência terceirizada.
- A Supervalorização de Processos: Debates sobre o uso de recipientes como ânforas, ovos de concreto, leveduras indígenas ou inoculadas muitas vezes tomam mais espaço do que o que realmente importa: o vinho na taça. Embora esses tópicos sejam relevantes na técnica e na filosofia de produção, muitos consumidores acabam fascinados por esses conceitos sem avaliar se o resultado final está à altura do discurso ou sequer sabem dizer se gostaram do vinho em si.
- O Mito da Intervenção: O conceito de mínima intervenção no vinho tem ganhado destaque, mas, em alguns casos, essa ideia é levada a extremos que desconsideram uma verdade fundamental: o vinho é, por definição, um produto da intervenção humana. Desde o cultivo das uvas até o engarrafamento, cada etapa envolve decisões deliberadas. Ao romantizar uma suposta pureza natural, cria-se uma narrativa onde o ser humano é visto como um intruso, e não como parte essencial do processo. No entanto, o vinho não é um acidente da natureza; ele nasce de uma relação intrínseca entre o homem e o ambiente. Valorizar a mínima intervenção não significa ignorar essa relação, mas sim reconhecer que a qualidade final depende da harmonia entre as escolhas humanas e o respeito ao terroir. Reduzir o protagonismo humano a quase nada é um discurso contraditório e desconectado da realidade do vinho.
Resgatando a Essência
Para Thoreau, a simplicidade era o caminho para reconectar-se ao que realmente importa. No universo do vinho, isso significa reavaliar o que nos guia: estamos bebendo vinho ou discursos vazios? Estamos escolhendo com o paladar ou com a mente apodrecida pelo excesso de informações?
O vinho não precisa de um discurso técnico ou de uma estética perfeita para ser grande. Precisa de autenticidade. Uma garrafa simples pode guardar um vinho incrível, enquanto o rótulo badalado nem sempre entrega o que promete. Resgatar o gosto é um ato de liberdade, que exige coragem para desafiar o que nos dizem e confiar no que sentimos.
O Papel do Mercado e do Consumidor
O mercado alimenta esse apodrecimento ao transformar vinhos em fetiches e experiências em espetáculos. Mas o consumidor tem sua parcela de responsabilidade. Se insistimos em dar mais valor à embalagem do que ao conteúdo, aos discursos do que ao paladar, contribuímos para perpetuar esse ciclo.
Um Brinde ao Paladar Livre
Vinho é cultura, história e, acima de tudo, prazer sensorial. É hora de desconstruir o apodrecimento da mente e do gosto, trocando a superficialidade pelo aprofundamento. Que possamos voltar a beber com os sentidos e não com os olhos, com a mente ou com as redes sociais. Que cada taça seja um convite à redescoberta de nossa própria autonomia, sem que nunca esqueçamos de sermos fiéis ao próprio gosto.
Por Eduardo Angheben.